O Decreto nº 8.858/2016 e a tardia regulamentação do uso das algemas.


Dispõe o art. 199 da Lei 7.210 de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal:
“Art. 199. O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”.
Ocorre que desde 1984 (ano da Lei de Execução Penal) não havia no ordenamento jurídico brasileiro o necessário decreto federal que disciplinasse o emprego de algemas, como determina o art. 199 da LEP, até a publicação do Decreto nº 8.858 de 26 de setembro de 2016, o qual regulamenta o dispositivo legal em foco. Nesse contexto, aduz o art. 1º:

“Art. 1º O emprego de algemas observará o disposto neste Decreto e terá como diretrizes:
I - o inciso III do caput do art. 1º e o inciso III do caput do art. 5º da Constituição, que dispõem sobre a proteção e a promoção da dignidade da pessoa humana e sobre a proibição de submissão ao tratamento desumano e degradante;
II - a Resolução no 2010/16, de 22 de julho de 2010, das Nações Unidas sobre o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de Bangkok); e
III - o Pacto de San José da Costa Rica, que determina o tratamento humanitário dos presos e, em especial, das mulheres em condição de vulnerabilidade”.

Observa-se no art. 1º a preocupação do legislador com o tratamento digno da pessoa presa, com enfoque especial na mulher, preservando assim sua integridade física e moral, pois não se pode perder de vista que o preso também é titular de direitos que devem ser resguardados. Tal preocupação resta evidente ao analisarmos os incisos I, II e III, do art. , do Decreto nº 8.858/2016:

O art. , III, da Constituição Federal, posiciona a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, o que, em suma, significa que todos os atos realizados pelo Brasil, deverão estar em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, princípio balizador do Estado Democrático de Direito. Na mesma direção, o inciso III do art. da Carta Magna determina que ninguém seja submetido a tortura, nem a tratamento desumano ou degradante.
 
O inciso II, por sua vez, faz referência a um tratado internacional de direitos humanos, intitulado de “Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras” ou simplesmente Regras de Bangkok que, de acordo com seu próprio texto são “inspiradas por princípios contidos em várias convenções e declarações das Nações Unidas”. Em razão disso, tais regras estão de acordo com as provisões do direito internacional em vigor, dirigindo-se às autoridades penitenciárias e agências de justiça criminal, incluindo-se os responsáveis pela criação de políticas públicas, legisladores, o Ministério Público, o Poder Judiciário e seus respectivos funcionários.
Já o inciso III alude à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, ou Pacto de San José da Costa Rica. Nesse aspecto, merece ser destacado o art. 5, in verbis:

“Artigo 5. Direito à integridade pessoal
  1.  Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.
  2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”.
O art. do Decreto 8.858/2016 trata da permissão para o uso das algemas: “É permitido o emprego de algemas apenas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, causado pelo preso ou por terceiros, justificada a sua excepcionalidade por escrito”.

Por fim, o art. 3º traz em sua redação a vedação ao uso da algemas especificamente: “É vedado emprego de algemas em mulheres presas em qualquer unidade do sistema penitenciário nacional durante o trabalho de parto, no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a unidade hospitalar e após o parto, durante o período em que se encontrar hospitalizada”.

Ainda que tardia (como quase tudo no Brasil), a regulamentação é bem vinda. Todavia, não podemos deixar de notar que anteriormente à publicação do Decreto nº 8.858/2016, a súmula vinculante nº 11 já estabelecia que “só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”. É evidente a grande semelhança entre as redações do Decreto 8.858/2016 e a Súmula Vinculante nº 11, porém na parte final desta estão previstas as consequências decorrem do uso das algemas fora das hipóteses mencionadas no decreto ou sem a apresentação de justificativa por escrito.

Antes da SV nº 11, aprovada em 13 de agosto de 2008, a Lei 11.689 de 09 de 2008 alterou o procedimento especial do Tribunal do Júri, previsto no Código de Processo Penal. Dentre outras matérias, a Lei 11.689/08 disciplinou também o uso das algemas no acusado em plenário, especificamente no § 3º do art. 474 ao dispor que não será permitido algemar o réu durante o período em que permanecer no plenário do júri, exceto se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes. Além disso, o inciso I do art. 478 estabelece que durante os debates, as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado. Salvo essas duas hipóteses delineadas no CPP, nada mais havia na legislação que disciplinasse o uso de algemas.

Referências:
BRASIL.
Decreto nº 8.858 de 26 de setembro de 2016.
Decreto-lei nº 3.689 de 03 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal.
Lei 7.210 de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal
 

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