Alterações Estatutárias (Lei n. 13.106/2015): Criminalização, infracionalização e revogação.

A Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), por mais esta vez, foi alterada, agora, pela Lei n. 13.106/2015 que se destinou a criminalizar a venda, o fornecimento, o ato de servir, ministrar ou entregar bebida alcoólica a criança ou a adolescente; para além é certo de estabelecer nova infração administrativa (art. 258-C); e, finalmente, revogar dispositivo semelhante na Lei das Contravencoes Penais (Decreto-Lei n. 3.688/41).
Desta maneira, o art. 243 da Lei n. 8.069/90 passou a vigorar com a seguinte redação: “Vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar, ainda que gratuitamente, de qualquer forma, a criança ou a adolescente, bebida alcoólica ou, sem justa causa, outros produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica: Pena – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave”. A partir de agora, ao lado dos elementos normativos – “outros produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica” – que necessitam de valoração jurídica, restou especificamente descrita como uma das modalidades criminalizada na endonorma típica (caput do art. 243): a bebida alcoólica.

Até porque, a bebida alcoólica certamente é um daqueles produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica; inclusive, razão pela qual, o inc. VI do art. 101 da Lei n. 8.069/90, expressamente, determina como medida específica de proteção a “inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos” não só para a criança e ou o adolescente, mas, também, para qualquer membro de seu respectivo núcleo familiar.


Para o mais, verifica-se que na perinorma penal típica fora cominada a sanção penal (pena) de “detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa”, e, também, o enunciado, por assim dizer, “endo-perinormativo” com as seguintes expressões “se o fato não constitui crime mais grave”, que, por sua vez, caracteriza a subsidiariedade da aplicação do art. 243 da Lei n. 8.069/90, em concurso (“aparente”) com outra (s) norma (s) pena (is) mais grave (s).

Aníbal Bruno, em suas lições, sempre pontuou que se trata de matéria amplamente discutível, a começar pelos princípios que orientam a (re) solução legal (concreta) do concurso entre normas penais, para, assim, afirmar que a “norma principal prevalece sobre a norma simplesmente subsidiaria; isto é, a norma subsidiária só se aplica se ao caso não for aplicável a norma principal. É o princípio da subsidiariedade. Às vezes, é a própria lei que cria a subsidiariedade por meio de expressões que indicam que só será aplicável se o fato não constituir crime mais grave; [...] A norma subsidiária é a menos grave, para qual decai o fato se não se ajusta tipicamente à norma principal”. (BRUNO, Aníbal. Direito Penal: parte geral. Tomo I. Introdução; norma penal; fato punível. 5. Ed. Rio de Janeiro: Forense. 2005, p. 169).

A Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) também descreve inúmeras condutas que são classificadas como infrações administrativas, para, assim, responsabilizar administrativa e civilmente as pessoas físicas e jurídicas, isto é, para imposição de penalidade administrativa – e, algumas vezes, para responsabilização civil – por infração às normas de proteção à criança e ao adolescente.

As infrações administrativas estão elencadas nos arts. 245 a 258-C do Estatuto da Criança e do Adolescente, então, agora, modificado pela Lei n. 13.016/2015, ao ser acrescido dessa última figura legislativa (art. 258-C), através da qual restou determinada a imposição de penalidade administrativa a quem descumprir a proibição estabelecida no inc. II do art. 81 da Lei n. 8.069/90, isto é, quem descumprir a proibição de venda à criança ou ao adolescente de bebidas alcoólicas.

A penalidade administrativa, por assim dizer, a perinorma da infração administrativa estabelecida pela Lei n. 13.106/2015 que acrescentou o art. 258-C à Lei n. 8.069/90, é subdividida em sanção pecuniária e administrativa.

As penalidades administrativas são multa (pecuniária) e interdição (medida administrativa) – isto é, multa de R$ 3.000,00 (três mil reais) a R$ 10.000,00 (dez mil reais); e medida administrativa de interdição do estabelecimento comercial até o recolhimento da multa aplicada –, as quais poderão ser concomitantemente determinadas pelo órgão julgador, conforme o rito procedimental específico previsto nos arts. 194 a 197 da Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Como já se disse, a nova Lei n. 13.106/2015 revogou o inc. I do art. 63 do Decreto-Lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravencoes Penais), que, por sua vez, considerava contravenção relativa à polícia de costumes servir bebidas alcoólicas a menor de 18 (dezoito) anos de idade. Senão, que, diversamente, de algumas outras alterações legislativas, observa-se que as realizadas pela Lei n. 13.106/2015 entraram em vigor na data da publicação dessa nova figura legislativa, isto é, no dia 18 de março de 2015, uma vez que não se verificou o instituto jurídico-legal da “vacatio legis”, vale dizer, não foi estabelecido prazo para o início de sua própria vigência. (RAMIDOFF, Mário Luiz. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE: comentários à Lei n. 12.594/2012. São Paulo: Saraiva, 2012. As alterações estatutárias determinadas pela Lei do SINASE, contudo, impôs a observância de prazo para o início de sua própria vigência. Em comentário sobre a matéria, pontuou-se, então, que “É o que se denomina de vacatio legis, isto é, o período (espaço de tempo) em que as regras jurídicas aguardam para entrar efetivamente em vigor; quando não, o lapso temporal entre a data da publicação da lei e a data do início de sua vigência”). 

Contudo, espontaneamente e acriticamente não se pode ser favorável a alterações assistemáticas da Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), principalmente, as de cunho repressivo-punitivo – que certamente não têm o condão de integralmente proteger (doutrina da proteção integral) a criança e o adolescente – entendendo, portanto, que a casuística (bebidas alcoólicas) já estaria contemplada no tipo penal descrito no art. 243 (produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica), em que pese a generalização (elementos normativos) que caracterizava as expressões utilizadas para descrição típica.

Por isso mesmo, a modalidade hermenêutica denominada dogmaticamente de formal-sistemática poderia auxiliar a valoração normativa da mencionada generalização através do que restou consignado como dever legal de todos, isto é, a prevenção de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente (art. 70), autorizando-se, assim, a conjugação com regulamentação proibitiva específica (casuística) contida no inc. II (bebidas alcoólicas) do art. 81 da Lei n. 8.069/90. Não se trata de interpretação ampliativa, mas, sim, de especificação do conteúdo proibitivo (normativo) do tipo penal especial (art. 243), legalmente, plausível não só segundo a teoria jurídica do crime (dogmática jurídico-penal), mas, também, conforme a doutrina da proteção integral da criança e do adolescente. (RAMIDOFF, Mário Luiz. Direitos difusos e coletivos IV: Estatuto da criança e do adolescente. Vol. 37. São Paulo: Saraiva, 2012 (Coleção Saberes do Direito). A mencionada figura legislativa está em linha com as diretrizes estatutárias estabelecidas para a prevenção de ameaças e violências contra os direitos da criança e do adolescente, nos moldes do que foi consignado na Seção II, do Capítulo II, do Título III, do Livro I, do Estatuto; em especial, à proibição da venda a criança ou ao adolescente de bebidas alcoólicas, bem como produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica ainda que por utilização indevida).

Entretanto, continua-se, aqui, a insistir na proposição de (re) soluções adequadas à (trans) formação social pelos novos valores humanitários – e, aqui, especificamente, destinados à criança e ao adolescente a título de proteção especial e integral (diferenciada) – que, certamente, não se opera única e exclusivamente através de criminalizações seletivas utilitariamente destinadas ao controle do desvio nem sempre socialmente aceito ou reconhecido como tal pelos segmentos sociais não-hegemônicos político-economicamente.

Pois, uma coisa é certa: o processo de criminalização seletiva de condutas sociais que são consideradas desviadas pelas hegemonias político-econômicas, por si só, não tem o condão de integralmente proteger, e, sequer, promover os interesses indisponíveis, os direitos individuais e as garantias fundamentais, enfim, as liberdades públicas especificamente destinadas à criança e ao adolescente.

A proposta, aqui, continua a ser a de contração, contenção e superação do expansionismo do direito penal desigual e inadequado, como bem adverte Alessandro Baratta, para quem “é preciso evitar cair em uma política reformista e ao mesmo tempo ‘panpenalista’, que consiste em uma simples extensão do direito penal, ou em ajustes secundários de seu alcance, uma política que poderia produzir também uma confirmação da ideologia da defesa social, e uma ulterior legitimação do sistema repressivo tradicional, tomado na sua totalidade”. (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: Introdução à sociologia do direito penal. 2. Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos; Instituto Carioca de Criminologia. 1999. P. 202).

É preciso romper com a lógica “panpenalista” que a tudo oferecer instrumentos penais como método de (re) solução de questões sociais complexas e fundamentais para a coexistência democraticamente respeitosa e socialmente responsável; senão, como sempre advertia Alessandro Baratta, “é preciso resguardar-se de supervalorizar a sua idoneidade [Direito Penal] e, ao contrário, dar a justa importância, também neste campo, a meios alternativos de controle, não menos rigorosos, que podem se revelar, em muitos casos, mais eficazes”. (BARATTA, Alessandro. Op. Cit.).

No entanto, observe-se que com a promulgação da Lei n. 13.106/2015 que especificou a criminalização da conduta de “vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar bebida alcoólica a criança ou a adolescente” não houve nenhuma vinculação a qualquer dotação orçamentária específica, e, muito menos, a organização de estruturas e ou de funções para tal desiderato, tornando, assim, muito mais fácil regulamentar esta questão social (controle do desvio) pelo Direito Penal; do que adequadamente estabelecer políticas sociais públicas específicas que certamente determinariam a vinculação orçamentária específica para aprovação da supramencionada figura legislativa (alíneas c e d do parágrafo único do art. 4º da Lei n. 8.069/90).

Por mais esta vez, insiste-se: o que importa é a formulação e a execução de políticas sociais públicas específicas que se destinem à atenção integral da saúde da criança e do adolescente, principalmente, através da destinação orçamentária de recursos para a organização, estruturação e funcionamento de ações, serviços e programas de atendimento especializado não só aos usuários que fazem uso abusivo de bebidas alcoólicas – de “droga” ou quaisquer outros “produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica” –, mas, também, aos membros de seu núcleo familiar (apoio institucional à criança, ao adolescente e à família).

E, para tal desiderato, torna-se de fundamental importância a efetivação da doutrina da proteção integral e os seus consectários estatutários da absoluta prioridade (garantia) e da condição humana peculiar de desenvolvimento (subjetividade), para, assim, determinar que o lugar privilegiado da criança e do adolescente é junto às suas famílias, na escola, e, principalmente, nas dotações orçamentárias de recursos que vinculam administrativa, civil e criminalmente todos os gestores públicos, uma vez que se trata da garantia fundamental da absoluta prioridade (art. 4º da Lei n. 8.069/90).

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