“Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância.” (Simone de Beauvoir)
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o crime de aborto causou frisson nas redes sociais.
Isso porque decidiu-se que “é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal
– que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de
incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro
trimestre”, à medida que violaria direitos fundamentais da mulher e o princípio da proporcionalidade (cf. STF, HC 124.306, voto-vista do Min. Luís Roberto Barroso).
Assim, entendeu-se pela inconstitucionalidade do crime de aborto voluntário, disposto nos artigos 124 a 126 do Código Penal (praticado pela própria gestante ou por terceiro, respectivamente), quando efetivado no primeiro trimestre da gestação.
A
(in) constitucionalidade do aborto envolve não apenas questões
jurídicas, mas, principalmente, questões de caráter ideológico,
religioso, etc. Isso porque, assim como a vida é protegida em nossa Constituição Federal,
observa-se que outros princípios (de conteúdo aberto) também devem ser
considerados, tais como a dignidade da pessoa humana, bem como a
liberdade e a saúde da mulher.
Lembre-se: a vida não é um direito
absoluto dentro do ordenamento jurídico. Basta lembrar as exceções,
seja no âmbito constitucional, com a autorização da pena de morte em
caso de guerra (artigo 5º, inciso XLVII, a, da Constituição Federal), seja na seara do direito penal, com o estado de necessidade, a legítima defesa e o aborto (artigos 24, 25 e 128, respectivamente, todos do Código Penal).
Daí
porque o confronto entre o direito à vida em potencial – que depende do
útero materno para sua formação – e os direitos fundamentais da mulher
deve ser solucionado à luz dos princípios da ponderação de bens e da
proporcionalidade.
E não são poucos os direitos fundamentais das
mulheres correlacionados ao tema expressamente citados na decisão em
comento: (i) autonomia da mulher; (ii) direito à integridade física e
psíquica, (iii) direitos sexuais e reprodutivos da mulher; (iv)
igualdade de gênero; (v) igualdade social (impacto desproporcional sobre
mulheres pobres).
Assim, o que se observa é que os crimes de aborto não protegem a vida do feto, atingindo apenas a “quantidade de abortos seguros”, mostrando-se, consequentemente, ineficazes para a proteção do bem jurídico criminalizado.
Isso
não significa que se defenda a prática de procedimentos de aborto.
Aliás, uma premissa importante é destacada na própria decisão, da qual
compartilho:
“O aborto é uma prática que se deve procurar evitar, pelas complexidades físicas, psíquicas e morais que envolve. Por isso mesmo, é papel do Estado e da sociedade atuar nesse sentido, mediante oferta de educação sexual, distribuição de meios contraceptivos e amparo à mulher que deseje ter o filho e se encontre em circunstâncias adversas. Portanto, ao se afirmar aqui a incompatibilidade da criminalização com a Constituição, não se está a fazer a defesa da disseminação do procedimento. Pelo contrário, o que se pretende é que ele seja raro e seguro”.
Competem
ao Estado, portanto, providências de natureza educativa e assistencial,
mas não a imposição de restrições à liberdade da mulher que se revelam
ineficazes e que há muito seguem enraizadas em questões de cunho moral.
Um sopro de esperança, numa semana difícil como a que tivemos.
Fonte: Canal Ciências Criminais