Paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico, decide STF
Em sessão nesta quarta-feira (21), o Plenário do Supremo
Tribunal Federal (STF) entendeu que a existência de paternidade
socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico. Por maioria
de votos, os ministros negaram provimento ao Recurso Extraordinário (RE)
898060, com repercussão geral reconhecida, em que um pai biológico
recorria contra acórdão que estabeleceu sua paternidade, com efeitos
patrimoniais, independentemente do vínculo com o pai socioafetivo.
Relator
O relator do RE 898060, ministro Luiz Fux, considerou que o princípio
da paternidade responsável impõe que, tanto vínculos de filiação
construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto aqueles
originados da ascendência biológica, devem ser acolhidos pela
legislação. Segundo ele, não há impedimento do reconhecimento simultâneo
de ambas as formas de paternidade – socioafetiva ou biológica –, desde
que este seja o interesse do filho. Para o ministro, o reconhecimento
pelo ordenamento jurídico de modelos familiares diversos da concepção
tradicional, não autoriza decidir entre a filiação afetiva e a biológica
quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico
de ambos os vínculos.
“Do contrário, estar-se-ia transformando o ser humano em mero
instrumento de aplicação dos esquadros determinados pelos legisladores. É
o direito que deve servir à pessoa, não o contrário”, salientou o
ministro em seu voto (leia a íntegra).
O relator destacou que, no Código Civil de 1916, o conceito de
família era centrado no instituto do casamento com a "distinção odiosa”
entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos, com a filiação sendo
baseada na rígida presunção de paternidade do marido. Segundo ele, o
paradigma não era o afeto entre familiares ou a origem biológica, mas
apenas a centralidade do casamento. Porém, com a evolução no campo das
relações de familiares, e a aceitação de novas formas de união, o eixo
central da disciplina da filiação se deslocou do Código Civil para a
Constituição Federal.
“A partir da Carta de 1988, exige-se uma inversão de finalidades no
campo civilístico: o regramento legal passa a ter de se adequar às
peculiaridades e demandas dos variados relacionamentos interpessoais, em
vez de impor uma moldura estática baseada no casamento entre homem e
mulher”, argumenta o relator.
No caso concreto, o relator negou provimento ao recurso e propôs a
fixação da seguinte tese de repercussão geral: “A paternidade
socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o
reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem
biológica, salvo nos casos de aferição judicial do abandono afetivo
voluntário e inescusável dos filhos em relação aos pais”.
Partes
Da tribuna, a representante do pai biológico sustentou que a
preponderância da paternidade socioafetiva sobre a biológica não
representa fuga de responsabilidade, mas sim impede que a conveniência
de um indivíduo, seja o filho ou o pai, opte pelo reconhecimento ou não
da paternidade apenas em razão de possíveis efeitos materiais que seriam
gerados. Defendeu que fosse mantido apenas vínculo biológico sem
reconhecimento da paternidade, portanto, sem efeitos patrimoniais, pois a
própria filha afirmou que não pretendia desfazer os vínculos com o pai
socioafetivo.
Atuando na ação na qualidade de amicus curiae (amigo da
corte), o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) sustentou
que a igualdade de filiação – a distinção entre filhos legítimos e
ilegítimos – deixou de existir com a Constituição de 1988. O instituto
defende que as paternidades, socioafetiva e biológica, sejam
reconhecidas como jurídicas em condições de igualdade material, sem
hierarquia, em princípio, nos casos em que ambas apresentem vínculos
socioafetivos relevantes. Considera, ainda, que o reconhecimento
jurídico da parentalidade socioafetiva, consolidada na convivência
familiar duradoura, não pode ser impugnada com fundamento exclusivo na
origem biológica.
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, se manifestou no
sentido de que não é possível fixar em abstrato a prevalência entre a
paternidade biológica e a socioafetiva, pois os princípios do melhor
interesse da criança e da autodeterminação do sujeito reclamam a
referência a dados concretos acerca de qual vínculo deve prevalecer. No
entendimento do procurador-geral, é possível ao filho obter, a qualquer
tempo, o reconhecimento da paternidade biológica, com todos os
consectários legais. Considera, ainda, que é possível o reconhecimento
jurídico da existência de mais de um vínculo parental em relação a um
mesmo sujeito, pois a Constituição não admite restrições injustificadas à
proteção dos diversos modelos familiares. Segundo ele, a análise deve
ser realizada em cada caso concreto para verificar se estão presentes
elementos para a coexistência dos vínculos ou para a prevalência de um
deles.
Votos
O ministro Luiz Fux (relator), ao negar provimento ao recurso
extraordinário, foi seguido pela maioria dos ministros: Rosa Weber,
Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e a
presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia. De acordo com a ministra
Rosa Weber, há possibilidade de existência de paternidade socioafetiva e
paternidade biológica, com a produção de efeitos jurídicos por ambas.
Na mesma linha, o ministro Ricardo Lewandowski reconheceu ser possível a
dupla paternidade, isto é, paternidade biológica e afetiva
concomitantemente, não sendo necessária a exclusividade de uma delas.
O ministro Dias Toffoli salientou o direito ao amor, o qual está
relacionado com as obrigações legais do pai biológico para com o filho, a
exemplo da alimentação, educação e moradia. “Se teve o filho, tem
obrigação, ainda que filho tenha sido criado por outra pessoa”,
observou. Ao acompanhar o relator, o ministro Gilmar Mendes afirmou que a
tese sustentada pelo recorrente [pai biológico] apresenta “cinismo
manifesto”. “A ideia de paternidade responsável precisa ser levada em
conta, sob pena de estarmos estimulando aquilo que é corrente porque
estamos a julgar um recurso com repercussão geral reconhecida”, avaliou.
O ministro Marco Aurélio, que também seguiu a maioria dos votos,
destacou que o direito de conhecer o pai biológico é um direito natural.
Para ele, a filha tem direito à alteração no registro de nascimento,
com as consequências necessárias. Entre outros aspectos, o ministro
Celso de Mello considerou o direito fundamental da busca da felicidade e
a paternidade responsável, a fim de acolher as razões apresentadas no
voto do relator. Ele observou que o objetivo da República é o de
promover o bem de todos sem qualquer preconceito de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia destacou que “amor não
se impõe, mas cuidado sim e esse cuidado me parece ser do quadro de
direitos que são assegurados, especialmente no caso de paternidade e
maternidade responsável”.
Divergências
O ministro Edson Fachin abriu a divergência e votou pelo parcial
provimento do recurso, ao entender que o vínculo socioafetivo “é o que
se impõe juridicamente” no caso dos autos, tendo em vista que existe
vínculo socioafetivo com um pai e vínculo biológico com o genitor.
Portanto, para ele, há diferença entre o ascendente genético (genitor) e
o pai, ao ressaltar que a realidade do parentesco não se confunde
exclusivamente com a questão biológica. “O vínculo biológico, com
efeito, pode ser hábil, por si só, a determinar o parentesco jurídico,
desde que na falta de uma dimensão relacional que a ele se sobreponha, e
é o caso, no meu modo de ver, que estamos a examinar”, disse, ao
destacar a inseminação artificial heteróloga [doador é terceiro que não o
marido da mãe] e a adoção como exemplos em que o vínculo biológico não
prevalece, “não se sobrepondo nem coexistindo com outros critérios”.
Também divergiu do relator o ministro Teori Zavascki. Para ele, a
paternidade biológica não gera necessariamente a relação de paternidade
do ponto de vista jurídico e com as consequências decorrentes. “No caso
há uma paternidade socioafetiva que persistiu, persiste e deve ser
preservada”, afirmou. Ele observou ser difícil estabelecer uma regra
geral e que deveriam ser consideradas situações concretas.
A tese de repercussão geral, que servirá de parâmetro para casos
semelhantes em trâmite na justiça em todo o país, deve ser fixada pela
Corte na sessão plenária desta quinta-feira (22).
PR,EC,FT/FB
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